quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A MÚSICA AFRICANA, OS INSTRUMENTOS...


 

O cantor estava sentado sobre o linóleo descolorido que cobria o chão desigual e empoeirado de um pequeno casebre, perto do do rio Gâmbia, na África. Sob as suas roupas escuras estendia-se um tapete tecido à mão que as mantinha separadas da poeria. Um grupo de pessoas que havia ouvido a música passando por lá amontoava-se no pequeno espaço. Como não havia porta, só tinham que segurar a cortina florida pendurada na entrada. Ele estava meio cantando, meio recitando versos longos, livres e poéticos que contavam a história de um rei local antes da chegada dos europeus, um rei que estava lutando contra outra tribo que tinha invadido o seu território. Enquanto cantava, as pessoas que se apinhavam lá dentro, a maioria delas usando camisas de manga curta e calças de algodão muito desgastadas, murmurava e assentia com a cabeça.
   Nas mãos, ele tinha um pequeno instrumento de cordas caseiro que tocava repetindo uma série de figuras rítmicas, com um tom suave e apagado das cordas, proporcionando um acompanhamento leve e apressado à profunda ressonância de sua voz. Um som pausado de pés descalços batendo no linóleo acompanhava o movimento dos seus dedos. Cada língua da África do Sul possuia uma palavra diferente para designar o "cantor", mas todas elas utilizam um termo mais geral, "griot". O cantor de casebre era um griot da tribo wolof, e é possível que alguém como ele começasse pela primeira vez a configurar a música que hoje em dia conhecemos como Blues. Nos muitos anos que transcorreram desde as canções como a que ele estava cantando percorressem o longo trajeto até os Estados Unidos, a música dos griots, os instrumentos que tocavam e as próprias canções sofreram inevitavelmente numerosas mudanças. Ainda é possível descobrir a origem de alguns instrumentos, mas outros elementos que conformam o blues moderno se perderam em algum lugar, provavelmente sem remédio, durante os duros anos de experiência afro-americana.
   Os primeiros viajantes da costa oeste da África (a zona onde capturaram quase todos os escravos que depois foram levados aos EUA) já descreviam os griots e suas canções, ainda que em algumas ocasiões utilizassem a palavra local que designava "cantor". Em 1745, uma recompilação de escritos sobre viagens publicadas em Londres, Collection Of Voyages, de Green, incluia descrições de cantores, de um viajante inglês chamado Jobson:
   Sobre o papel que desempenham os músicos na sociedade parece existir um grande acordo, embora existam diferenças na hora de dar-lhes um nome. Aqueles que tocam instrumentos são pessoas com um caráter muito singular e parecem ser tanto poetas quanto músicos, algo semelhante aos bardos ingleses e os antigos bretões. Todos os autores franceses que descrevem os países dos jalof e os fuli os chamam de 'guiriots', mas Jobson os chama de 'judies', que ele interpreta como violinistas. Talvez o primeiro que tenha aparecido foi o nome de jalof e fulie, depois, o mandindo.
   O viajante Bardot diz que guiriot, na linguagem dos negros que vivem perto de Sanaga, significa fofão, e que são como uma espécie de aduladores. Os reis e os homens importante do país têm cada um deles dois ou mais guiriots para que, de vem em quando, os divirtam e entretenham os estrangeiros.
   As três tribos mencionadas na passagem anterior são conhecidas hoje em dia como wolof, fula e mandingo. Posto que, até faz pouco tempo, estas tribos não possuíam uma língua escrita, a ortografia dos nomes varia. Somente no Senegal, podem-se encontrar mais de trinta ortografias distintas para o nome wolof. A palavra juddies, que Jobson interpretou como "violinistas", é provavelmente a palavra mandingo jali, o termo que designa contor. Embora tenha interpretado a palavra como "violinistas", é possível que estivesse se referindo aos griots fula, conhecidos como jelefo. Os cantores fula acompanhavam-se a si próprios com um pequeno violino de corda chamada de 'riti'.
   O instrumento que o cantor estava tocando para o grupo informal de ouvintes no casebre da Gâmbia era feito de abóbora alongada que tinha secado até chegar à dureza de um plástico. Tinha cinco cordas cortadas de um fio de nylon longo atadas à um pedaço de pau que fazia as vezes de braço do instrumento. Quatro cordas se estendiam até o final do pau, e a quinta estava atada perto do corpo do instrumento, com uma longitude mais curta que elevava o seu tom. Havia uma ponte talhada à mão que mantinha as cordas separadas da membrana da pele de cabra estirada que cobria o coret feito na abóbora. Na lingua do cantor, que era wolof, o instrumento se chamava 'halam'; na lingua dos músicos africanos que o levaram ao sul dos EUA tinha um nome, BANJO.
   Como tudo que chegou ao sul, vindo da África, o banjo sofreu mudanças durante os anos que passaram entre a sua chegada e o momento, talvez um século e meio depois, em que os primeiros banjos soaram no cilindro de um gramofone. Há uma pintura do século XVIII que representa um baile dos escravos na Virginia e mostra um instrumento que ainda era muito similar ao banjo africano, mas lá pelos anos trinta e sessenta do século XIX, quando era cada vez maior o número de músicos que começaram a pintar os rostos de negro e interpretar canções em bailes dos músicos afro-americanos nos palcos toscos das pequenas cidades da nação, o instrumento começou a mudar.
   Um dos músicos mais populares de banjo nos anos anteriores a guerra civil, "Picayune" Butler, ainda utilizava um instrumento feito com uma abóbora na década de quarenta, do século XIX, mas quando apareceu a primeira banda de músicos com a cara pintada de preto no palco onde ia acontecer o primeiro espetáculo de minstrel -- espetáculo de variedades, com artistas, na maioria brancos, que inclua canções e números cômicos, geralmente imitando de forma pejorativa os negros -- em 1853, o banjo já tinha sido americanizado. A membrana de pele estava agora estirada numa armação redonda, primeiro, de madeira e, depois, de metal. O cabo arredondado tinha sido susbtituido agora por um braço plano, e a corda curta ficou presa ao lado do braço com uma clavija. As cordas longas também ficaram unidas ao braço por clavijas, primeiro de madeira, como num violino, e depois de metal com rosca. A membrana era agora como um dos extremos de um tambor e, quando mudou, as clavijas e o aro que a mantinha estirada também eram de metal com rosca.
   O instrumento era o mesmo pequeno halam de cinco cordas ou konting, como se denomina uma versão maior do instrumento, mas em vez do som suave do ponteio, agora era mais barulhento, e posto que as cordas podiam-se tensionar mais, tocava num tom mais alto. O som do banjo ficou mais "metálico". O banjo junto com o violino se tornaram os instrumentos mais comuns das plantações do sul. O banjo não foi, de forma definitiva, o instrumento que conformaria o blues, mas foi o instrumento que contribuiu para desenvolver as técnicas que chegaram a fazer parte dos antecedentes do blues. 
   Fica dificil reconstuir a sua evolução, já que, no momento em que a música local do sul já estava sendo gravada por todas as partes, também tinha sido assumida por muitos cantores brancos, como Buell Kazee, Dock Booges e Clarence Ashley. Quase todos eles confessavam a influência da música dos seus vizinhos afro-americanos, que lhes tinham ensinado, como tocar. E aprenderam não somente todas as técnicas para tocar, que vinham diretamente do estilo de digitação dos gritos, mas também alguns padrões de canções e ritmos. Muitas canções antigas de banjo, interpretadas como "velhas melodias folk" por tocadores de banjo brancos, ainda conservam a configuração das melodias originais africanas, e alguns dos versos "sem sentido" das canções contem palavras e frases africanas. De fato, pode-se seguir a evolução do banjo, sem solução de continuidade, desde a Bacia Bambara da África do Sul, uma das zonas onde se capturavam muitos escravos, até o estilo Bluegrass -- música folk do Kentucky -- de músicos como EARL SCRUGG. O que frequentemente era considerado uma expressão cultural dos brancos do sul, é na realidade, um dos mais enérgicos vestígios da influência da cultura africana na música americana.

**Texto de Samuel Charters. Lançado no Brasil pela editor Altaya como coleção "Mestres do Blues"

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